15 dezembro 2008

Ser

Deu-se conta de que não estava bem quando por descuido, olhou-se no espelho e esquecera da própria imagem. Como um errante, passara tempo demais dentro de alguma floresta, sem reflexos ou algo que o fizesse lembrar-se de si.
Já havia duvidado daquela barba espessa que agora tomava conta de boa parte de seu rosto e os cabelos cresciam como trevos de quatro folhas, trepadeiras, inço.
O episódio do espelho o fez parar e admirar-se. Não que estaria gostando do que refletia agora, em primeira instância logo ali na sua frente, mas de um todo, sabia quem era aquele que o perseguia no olhar: ele-pessoa; ele-mesmo.

Logo, sua mesmice deixou de ser notada e ele passou a viver em sociedade como um outro qualquer, menor, que não precisava mais fazer alguma diferença dentre os demais de sua espécie.
Aprendera a respirar o mesmo ar que outros tantos como ele e, quando da ânsia de sentir-se sufocado, olhou em volta e encarou tudo até o brilho de realidade molhar suas pálpebras e fazê-lo cambalear, caindo em algum solo compartilhado.

Ali, sentiu-se único. Esquecera a vida toda que também era uma pessoa e que, enquanto pessoa, decepcionara-se consigo e com os demais, pois é isso que pessoas fazem, é assim que pessoas se comportam em meio ao potencial extremo de serem piedosas e auto-suficientes. Naquele momento, percebera que era mais um e não poderia errar em sua unicidade por muito mais tempo.

Largou a toalha do banho sobre a cama, vestiu-se e tapou os olhos com a mão ao sentir que a luz do sol já tocava a sua pele quando resolveu sair do quarto.

19 novembro 2008

Síndrome de Gregor Samsa

Você não precisa acordar metamorfoseado em um inseto gigante e repulsivo para se dar conta de que ainda não descobriu o porque de conseguir tornar-se volúvel e dezprezível aos olhos de quem o vê.

Ou viu.

15 novembro 2008

Finais

O barulho do tráfego às seis da tarde na Independência misturado com aqueles berros que ele despeja no meu ouvido, quase me faz dar a volta na contramão, subir o meio-fio e largar a direção do volante, atravessando o caminho de seja lá quem aparecer. Eu sei que vou acabar ouvindo um "vem pra cá que a gente conversa", mas daqui não sai mais conversa, mais nada. Mais nenhum eu, nenhum ele. Acabou no momento em que o início ficou para escanteio. É tão dilacerante te dizer isso assim, mas não consigo evitar chegar a essa infeliz conclusão. O que já dissemos um ao outro e o que ainda está por vir é dor e lamentos dos quais não quero ter de superar novamente. Sim, eu sei que já estou em processo póstumo e que superar será preciso. Um ano se passou desde que tudo ocorreu e cada vez que essa buzina ensurdece meu ouvido, tenho a sensação de ter entrado na máquina do tempo de alguém, alguma que deu certo, alguém um dia iria conseguir isso. Merda. Virei cobaia de mim mesma a esse ponto e agora só me resta ouvir que você me desculpa, mas que não podemos mais continuar juntos.

Constatado isso, eu entrego esse nosso jogo que não sai do lugar. Perdemos e não ganhamos nunca. Talvez naquela vez em que você me ouviu cantar na cozinha e ficou parado, com aqueles olhos apertados de quem recém acordou de um porre gigantesco. Aquilo foi lindo, sabe. Agora eu nem preciso mais disso. Não chegamos a caminhar no mesmo contínuo e nossas mãos por milhares de vezes não se entrelaçavam de uma forma sincera, quando andávamos por aí.

Sabe de uma coisa, na verdade você nunca soube, talvez suspeitasse, mas não podia ter certeza, eu nunca deixava você ter certeza de nada, pra poder ter a certeza de que você sempre me veria com aqueles olhos apertados de ressaca – Machado que me perdoe a pobre utilização dos olhos da Capitu – mas a verdade é que isso nunca aconteceu e que terminei tudo isso sem saber por quê, sem saber o que de nós havia em mim ou em você.




[escrito em 12 de agosto de 2008.]

28 outubro 2008

Meios

Há o A e o Z, e isso nada tem a ver com começos e finais.

Inevitavelmente, o A e o Z não devem se encontrar. Possivelmente nem saibam da existência um do outro. Incrivelmente embarcam em uma mesma linha contínua, a mesma.

Sorrateiramente ocupam um espaço enorme, o mesmo, onde só há lugar para o A ou o Z. Inevitavelmente eles não devem se encontrar.

Acontece que o A criou o parágrafo. E o Z quer dar continuidade. Mal sabe o Z, que o fim lhe pertence, não o meio. E ao A, só lhe resta abrir a porta e esperar a banda passar. Uma vez dado o pontapé, o lugar nunca pára de doer.

E assim foi, por um longo tempo entre o A e o Z. Que não sabiam de si ou de um elo que os ligava. Mas a conexão era explícita, vista de fora e de lado.

Enquanto o Z abusava de tentativas condensadas em ideais afirmados, o A olhava para fora da janela, sem prestar atenção.

Um dia, fora surpreendido com uma nova paisagem. E não agradou os sentidos. Fez menção de buscar o que havia lhe faltado, mas já era sabido por todos os lugares que o A havia perdido para sempre aquele jogo infinito de trilhar um caminho até o ponto final que, infelizmente, fixara morada por detrás do domínio de Z.



14 outubro 2008

Lançamento 104 que contam!

Clique em cima da imagem para obter maiores informações:

06 outubro 2008

Chuva ácida


Não é que você pensa em pular do prédio ou enfiar a cabeça raspada no forno do fogão – nem isso poderia, não compra gás há doze dias e seu prédio definitivamente atinge pequenos andares acima do solo – não. Vezenquando bate aquela sensação tempestuosa como a de uma chuva que cai incessantemente na cidade e você acaba por entrar naquele clima: deixa-se cair no chão e chora. Contribui para molhar os fiapos do tapete repleto de cinzas dos cigarros que você deixou de fumar há três semanas.

O problema é quando você obrigatoriamente é surpreendido pela finura da porta de casa e ouve algum vizinho tagarela descendo a escada contando no telefone celular que passou o feriado ao lado “daquela-pessoa-que-você-sabe-né-não-poderia-ser-mais-perfeita” e todos os requintes de crueldade que constituem uma vida feliz de um ser humano que, por ventura, não é você.

Até costuma sair do apartamento pra buscar algum prendedor que caiu na área comum de serviço, onde ainda tem a mania de pegar as peças de vestuário feminino que despencam dos varais lá de cima. Patética atitude refletida da solitária idéia de ter sido deixado de lado pela mulher que fazia seu peito revirar em nós – de início, bons, muito bons – mas que não suportou o cheiro de insegurança e arrepio em multidões que você constantemente exalava.

Talvez procurasse algum amigo, alguma trepada infalível, mas que diabos. Nada era por si tão atrativo quanto olhar por aquela janela imunda do quarto de hóspedes e ver quantas folhas secas eram atingidas pelas ferozes gotas do temporal, ao caírem na grama.

Outro dia você recebeu a carta de aviso do corte de luz. Pro inferno com tanta burocracia. Que me tirem a visão da noite, se se importam tanto, pensou enraivecido enquanto procurava pela gaveta do criado-mudo os comprimidos para dormir. Talvez amanhã eu nem precise mais transitar entre a claridade do dia e o sombrio anúncio da noite, regurgitou enquanto engolia quatro deles em um gole de suco de caju.

14 setembro 2008

E o desespero ao nosso grito

Tudo é uma grande tentativa. Das poucas concretas conclusões a que chegamos, essa é uma delas.
Pluralizando cada um de nós, diria que somos feitos de matéria fina e escassa; renovável, contudo. Naquele leve sopro perdemos um pouco de si, de tudo. Você perde um pouco mais de mim.
Inicio, então, a busca daquilo que se agrega aos entrenós. Não prometi a mim mesma qualquer segurança ou vitória. De certa forma eu sempre soube o que nos espera ao arriscarmo-nos por algo que não conseguimos tão fácil: irreparavelmente, um vazio.
No primeiro momento, subverto a visão ao personagem projetado em tela grande e vivas cores. Em seguida, escalo seus membros inferiores a fim de alcançar o topo e acariciar cada fio de cabelo novo. Não consegui nos manter no começo da subida. As sementes viraram flor, as barrigas cresceram, os diálogos encurtaram-se e tudo o que era mérito ao olhar pra cima em meu destino escorreu pelo ralo fundo. Agora, temida de si - e só -, encontrada nos salões enfumaçados e abarrotados daquela gente toda que só faz olhar por cima dos meus ombros, eu desabo em pontos finais, mesmo sabendo que não me deixarão permanecer.
Não é o que extravasa à flor da pele que incomoda; o essencial, invisível e sorrateiro, é aquilo que se esconde por dentro das roupas felpudas e toma espaço no meio de nossos cobertores antigos. Este vazio residente no encontro tão esperado. O antes e o que está por vir.
É aí que reside a loucura de um homem.

28 agosto 2008

Instantâneo

- OláTudobemComovai?

- Difícil essa. Podemos pular já para o Bom te Ver, Até Logo?



E foi pra casa ouvir Piaf cantar La Vie en Rose.

26 agosto 2008

Desfecho.

Eu poderia nunca ficar sabendo disso. Passaria todo este tempo sem descobrir. Às vezes me observo parado na esquina onde sempre passa o ônibus. Pergunto-me como teria sido viver uma realidade que não a minha. Que não a que sinto neste momento em que abro os olhos, já de tarde, ainda na cama, ao pensar antes de mais nada, em você.
Explodimos em nossa geração que quer demais àquilo que nem aprendeu a suportar. Aos nossos ancestrais, um abraço fraterno; nada mais. Sufocaram-nos em uma iludida satisfação, aquela que me faz perceber o quão distante você sempre estará, não importa o quanto nos esbarremos cotidianamente.
Vivemos o sempre e o até logo; o beijo na testa cada vez mais raro e a transa de cinco minutos atrás das portas.
Não encontramos espaços em nossas reuniões com grupos de amigos. Buscamos o extremo do nosso convívio natural e, na sofrida rouquidão de nossas gargantas fumadas, nos sentimos derrotados. Perecemos na ânsia de saber o que acontece na janela em frente a nossa casa, na tentativa de
apreender o que ainda não sabemos, mesmo afundados, afogados nas próprias calúnias tão temidas.

06 agosto 2008

Escaravelhos

Despejaram em minha boca o martírio dos corações aflitos.
Agora, somente devo acostumar-me com o que fim não parece conhecer ou,
Alio-me às causas encontradas nas latas de lixos reviradas,
Nos bueiros encardidos, nas brasas de cigarros abandonadas na maré cheia e
Na lua que mingua meus cabelos escassos, sofridos de tintura aguada e transparente, na
Tentativa errônea de disfarçar-me ao espelho que insiste em tornar a minha imagem,
Reflexo de mim mesma.


"... PARA QUE VIESSE A MORRER UM POUCO MENOS DESSA MORTE PARA TRÁS, QUE É A IGNORÂNCIA DAS COISAS ARRASTADAS PELO TEMPO ..."




Julio Cortázar

01 agosto 2008

Compartimento

Ah... os detalhes. Malditos sejam.
Que me enterrem sob uma imensa descrição de minha vida,
para que assim, eu possa finalmente
descansar em paz.

21 julho 2008

Livre pensar

"a liberdade só existe em segredo.
o limite é até onde podemos pensar.
quando chega-se lá, está demarcada
a fronteira final da individualidade.
liberdade a dois não existe.
liberdade = solidão"

GP

09 julho 2008

Grande e estranho é o mundo *

.
.


E por ter vivido em um tempo onde não havia dúvidas ou incertezas, sempre prezava o tom das palavras ditas ao vento, ou à.

Não era de súbito imediato tal entendimento ou cumplicidade, mas o era de forma densa e explicitamente apaziguada. Vivia em época de calmaria e, toda manhã, bons ares adentravam a sua janela lilás. Lá cultivava flores de tamanhos diversos, animais com pêlos afagáveis e sonhos; como se não houvesse aquele que, um dia, disse que tudo não poderia ser assim.




* Título de um livro de Ciro Alegria, escritor cubano.
.
E ao adendo, o acaso:

"De qualquer forma, poderia tê-lo amado muito. E amar muito, quando é permitido, deveria modificar uma vida – reconheceu, compenetrado. Como uma ideologia, como uma geografia: palmilhar cada vez mais fundo todos os milímetros de outro corpo, e no território conquistado hastear uma bandeira. Como quando, olhando para baixo, a deusa se compadece e verte uma fugidia gota do néctar de sua ânfora sobre nossas cabeças. Mesmo que depois venha o tempo do sal, não do mel..."


Caio F.

07 julho 2008

Além-você

Você,
vaga lembrança
de
ser.
Vagando o
é. E
não só
ou
mais:
variações de.

29 junho 2008

Você e só

Abstrato e sorrateiro, você sofre. Nunca dante atravessado caminho mais longo do que aquele que o leva a si próprio. Não era mais o mundano e o óbvio que o cercavam de um mim cada vez mais distante. Na companhia somente e unicamente de seus pesares, você se vê por fora e envolvido em uma dura capa de cristal; quebrado, trincado, como você já não nega mais o ser também. Seu sexo se desfez e você definitivamente perdeu o rumo de uma cama acalorada balançando-se em uma tentativa irrisória de intimidade consigo mesmo. Você se desligou de sua lúcida resposta a pensamentos corrosivos e diluentes. Não veste-se mais para ninguém. Você já não se importa em cariar os dentes ou cortar os cabelos. Na vida, há momentos em que é preciso parar, mas você não sabe ainda disso, talvez demore para chegar lá. Você sempre quer chegar lá. Ainda não sabe que uma hora é preciso parar. Quem sabe quem pode levar-te em união eterna para qualquer lugar? Você cansa. Só de pensar.

18 junho 2008

Um homem com uma dor



"um homem com uma dor
é muito mais elegante
caminha assim de lado
como se chegasse atrasado
andasse mais adiante."



Leminski

06 junho 2008

[pausa]

Sério mesmo, é ouvindo música instrumental que surgem os melhores pensamentos. Ou os pseudo-ones. Hoje acordei com vontade de misturar inglês nas minhas frases.
Anyway, escutando um jazz muito do bom é que parei pra analisar o amor. O que seria dele sem as canções de? Não, não se preocupe, o que está tocando por aqui não tem nada a ver com isso. Prolifera os neurônios, that's all. Bueno, como eu ia dizendo (sem muita esperança de levar muita coisa adiante), o amor vive da repetição do mesmo, da vivência dele em palavras, poesias, músicas, sentidos aguçados (palpitação instantânea, nervosismos, arrepios, gaguejos e afins) e da noção de estar sentindo-o. Uma pessoa torna-se tão bela quando é a pessoa que amamos. As canções do Los Hermanos multiplicam em milhões de dólares o seu valor significativo e, não venha me dizer que você já não afirmou com veemência: "meu deus, eles escreveram isso pensando em mim, tenho certeza!". E por aí vai.
Não estou de maneira nenhuma colocando o amor no lugar de sentimento inventado. Se bem que é, em tese. Deixe-me concluir. Em um momento ama-se, em outro, desama-se. É como deixar de mamar no peito da mãe. Amar nos traz um pouco a experiência apegada a certos estilos de vida que, noooormalmente, não está no cardápio, como dependência e tudo o que vem depois dela. We know.
Isso tudo é somente uma pausa. Um manifesto (não, não existem assinaturas) de um pensamento que, desmentindo o que eu disse no início, surgiu enquanto eu tomava um bom banho quente. Não que agora eu me sinta sem valor moral ou qualquer coisa que o valha. Pelo contrário: ou você não ficou morrendo de vontade de pôr em prática o aguçado sentido da audição naquele som maravilhoso onde ninguém precisa lhe dizer que o amor estava lá mas eu não vi, hã?

29 maio 2008

Você ser humano

Apressou-se a engrenagem. Você não sabe mais controlar a situação. Horas e horas e momentos que não vêm correm solto à sua frente. Entregou-se. Não saberá o local do acerto. Feixes de luz atravessam sua morada e, mesmo assim, você ainda não enxergou as setas indicando quê. No peito, transborda. Atravessa a carne, sangra até morrer e voltar. Talvez você só quisesse ficar. Permanecer. Não há quarto para o incerto, reserve-se no direito de seguir a própria cavalgada. Mas você sofre. Não entende. Tudo é vago e não consola a mente e o calor que tão logo vai se esvaindo pelo suor da pele gelada. No peito, treme. Você precipita uma bomba lançada no ar, no escamoso ar. São quase todos os dias e você torna a sentir a dor de ser dilacerado. Novamente é um suposto guerreiro em seu campo de batalha, onde o veneno das flechas que atravessam o sujeito não parecem desviar. Você não gosta de atalhos. No peito, aberto, sente. O problema é ser humano demais, você disse.

24 maio 2008

Mais uma vez, você

São quase três. Mais uma vez, você. Tocam firme os dedos pelo piano e você nem pode mais fumar seus cigarros tranquilamente. Enquanto desliza suave o encanto da valsa, pensa. E.
Você se divide em muitas partes, perde tanto quanto gostaria de ganhar e ainda não conseguiu encontrar o caminho mais fácil de chegar em casa. Uma vez fora de si, você dificilmente voltará tão cedo; pede que, por favor, não o esperem pois. Repete a música antiga e cultiva novos hábitos, daqueles que nem você seria capaz de prever que sim. Ela não apareceu. Você nem pode mais fumar. Olhou pro chão e encontrou a própria sombra parada em outro lugar. De ninguém mais. De agora em diante, você só espera por menos. Menos dor, menos querer. Menos alcançar o vácuo deliberadamente. Menos sufocar o peito apertado, o coração de tanto bater uma hora pode parar. De agora em diante, você. Mais uma vez.

19 maio 2008

Enquanto isso, você

Você mal consegue assimilar o que está havendo. Seca as mãos na toalha não trocada há doze dias e se olha no espelho. De súbito - e de certa forma permanente - , o rosto dela surge em seu pensamento e você começa a perder a força nas próprias pernas. Sua respiração torna-se ofegante e você percebe que perdeu a chance de não estar assim; deixou-se envolver nesse excitante desconhecido e agora não consegue mais conceber a idéia de passar um dia sem vê-la. Nesse jogo de aperto na garganta e espera pelo que não sabe que vem, você ouve a voz dela pela primeira vez, enquanto delira em lúcido despertar com a sensação maravilhosa de afundar os dedos de sua mãos nos cabelos incrivelmente encaracolados que ela tem. Você quase pode aspirar de relance o cheiro de cerejas frescas que eles provocam em suas narinas e no entanto, você jamais trocou uma palavra com ela, muito menos imagina com qual nome fora batizada.
Você acaba por deixar que o pensamento no rosto delicado e provocante que ela tem torne-se idéia fixa e nada desagradável. Poderia mirá-la pelo tempo que não saberia contar e sabe que precisará encará-la como nunca o fizera com ninguém.
Você mal pode esperar para passar horas relembrando das primeiras coisas que vocês dirão uma à outra. Pensando nessa possibilidade, você gira a maçaneta enferrujada e decide apanhar o jornal no tapete da porta.

12 maio 2008

Você

Você tem em mãos um velho álbum de fotografias, daqueles que ninguém mais se entusiasma em olhar. Pouco a pouco você distribui diferentes nós de emoção; a cada imagem de rosto ou lugar ou situação que norteia o seu olhar moribundo, você dá-se conta de uma porção de coisas que já não tem.
Cedo ou tarde, você será surpreendido por algum tipo de visita. Tarde, você recolherá os papéis amassados, arremessados. Cedo, você acordará para uma mesma realidade. Tateando em busca de seus óculos de grau, você enxergará com três outros sentidos; lambendo o próprio braço ossudo, você descobrirá que também é feito de gostos. Você não mais aceitará que o surpreendam sem sapatos. Amanhecerá e você ainda não pregou os olhos, não sentou no sofá novo, não deu de comer aos peixes, não cortou as unhas das mãos e nem pensou em terminar de ler aquele livro. Você nunca entende o porquê.
Acostumado, você passeia pelas mesmas galerias geladas e sem graça. Os cafés já não lhe dão o prazer de outrora e, há muito, você não sabe como é mexer nos cabelos de alguém. Essa desesperança não o faz sentir-se bem, mas pouco você se intromete para cambiar tal quadro, visto que tudo pode ser o que não é.
Não é cedo e no entanto, você ocupa-se mirando velhas fotos. Seus lábios colorem-se de vinho e você já não aguenta mais o peso da própria idade ali representado.

09 maio 2008

Deja Vu

"E, no entanto, embora cada um tente
fugir de si mesmo como de uma prisão
que o enclausura em seu ódio,
faz parte do mundo um grande milagre:
eu o sinto: toda vida é vivida."


Rainer Maria Rilke, Le livre du pèlerinage

03 maio 2008

Um conto mofado* ou Sobraram dedos

Originalmente publicado em Enfins no dia 25/10/2007.



A música tocava e ela não sabia dizer o que era. Talvez Jazz, quem sabe um daqueles cd's de relaxamento, não importava. Tudo o que queria era fazer uma pergunta a ele:
- Você acha que sabemos quando vamos morrer?
- O quê?
- É, quero dizer, você já sentiu em algum momento que iria morrer?
- Que pergunta! Claro que não. Se tivesse sentido, estaria morto e não aqui, com você, escutando essa ladainha.
- Pois eu acho que somos capazes de prever, nem que seja por uma fração de segundo, quando vamos morrer. E digo mais, em se tratando de tempo, eu acredito que minha morte pode acontecer a qualquer momento.
- (Ele ri) Você está louca! É melhor parar com esse pó antes que você cheire, se engasgue e morra na minha frente, fazendo com que eu acredite nas suas profecias descabidas!
(E procura ar pra se recompôr das palavras que acabara de ouvir dela.)
- Você está na mesma que eu.
- É, mas não estou sentado em um sofá laranja pregando a minha morte para quem quiser ouvir. Levante-se daí e me ajude a escolher outro som.
- Esse aí.
- Âhn?
- Esse aí que está no chão. O cd com capa colorida que eu te trouxe há séculos.
- Qual? Este aqui?
- É. Não, o do lado.
- Você acredita que as músicas possuem alguma espécie de mensagem oculta por trás daquilo que ouvimos? Jogue o isqueiro, por favor.
- Você diz, uma idéia subliminar?
- Quê?
- Uma mensagem que só pode ser captada se estivermos em um estado alterado de percepção?
- O quê? É, pode ser. Talvez seja isso que eu esteja pensando. Você não acha que... Esquece.
- A nossa morte pode aparecr na nossa frente neste mesmo estado de percepção que eu mencionei. A tal fração prévia de segundo, o momento final que...
- Tá bem, você tem razão. Agora me diga, o que você preferiria nesse momento: saber quando e como vai morrer ou descobrir o significado oculto por trás de uma música que esteja ouvindo?
- (Ela ri) Como se uma anulasse a importância da outra. Morte e Música, ambas começam com M e ambas nos fazem delirar sobre seus propósitos. Louco, não?
- Hmmm...
- Ah, esquece. Preciso de mais pó. Você tem?
- Aqui.
- Será que vão sentir a minha falta quando eu morrer?
- Eu vou. Mas acho que se começarmos a contar as pessoas, sobrarão dedos.
(Os dois desabam no tapete peludo no canto do quarto.)
- Tá ouvindo?
- O quê?
- Nada. Achei que tinha escutado o John dizer "Yes, he's dead" no final da música.
- Não é agora que começa o Revolver?
- Acho que é.
- Faz sentido.
- O quê?
- Garanto que para ele faltariam dedos.
- Quais dedos?
- Esquece.



*como os morangos, de Caio F


02 maio 2008

MIJAM NA GENTE E OS
JORNAIS DIZEM: CHOVE!



by não sei quem.

29 abril 2008

Das formas de dizer adeus

Em mais uma passagem por aquele cidade desconhecida ela fora para a casa dele. Não era o sexo ou o carinho que lhe fazia sentir ansiedade, eram as mentiras doces.
Doces deletérios que a faziam viajar centenas de quilômetros e que geravam oxigênio suficiente para aguentar meses de exploração em seu trabalho sem sentido.
Mais uma vez, ela estava diante do tapete torto em frente àquela porta. Não precisava nunca bater, ele a deixa entreaberta. E sai.
Ela parte, então, para mais uma tentativa desesperada de fazer valer a pena. O quê exatamente, não sabe. Talvez nem ele. Havia muito que longas conversas e olhares cortando a multidão se foram. Presenciavam suas ausências frente a frente, unidos no melhor abraço, na posição ideal de pegar no sono. Não era o sexo nem o carinho: como gostaria de entender o que a fazia viajar assim! Tanto tempo de espera naquele ônibus, mal acomodada, mal parando pra não pensar nele.
Estava lá. Ele prepara uma bebida, talvez acenderia um cigarro não fosse a repentina falta deles. Propõe uma descida até o armazém que ainda está aberto aquela hora. Lá embaixo o ar era úmido e três ou quatro bêbados ainda marchavam pela avenida. Do alto de um prédio antigo, ouvia-se o som da valsa que ele pôs em seu quarto encontro com ela. Não foi brega nem nada. Ela gostava dele.
Um silêncio ameaçador pairou no ar que então se transformou em gélido e escorreu por entre as mãos dos dois. Decidiram sentar em um degrau; em um prédio. Algo definitivamente acontecera. Ele a olhou decidido a passar o braço livre do cigarro pela metade ao redor de sua cintura; ela vacila, mas concorda. Incertezas e cigarros. A fumaça que faz votos de ficar rondando o ar dos dois é densa e não incomoda.
Passara das três. Alguém decidiu parar e mijar no muro em frente. Nem notaram. Seguiram a noite.
Houve o tempo em que não
mais se soube que algum dia, dois sentaram ali.

21 abril 2008

Procura-se

*
Você vai até a sacada da sala, olha o bairro em volta e percebe como há luzes acesas nos prédios vizinhos. A noite começa fria e úmida e de repente você nota que as janelas em frente estão escancaradas e que há cortinas novas presas nos cantos. E um quadro que antes não estava ali.
Vê o vizinho do 202 sentado no muro em frente ao portão do edifício e, em uma tentativa de estabelecer contato com outra pessoa, puxa qualquer papo, mas não é bem sucedido. Você não está a fim de papo. Sua cabeça está andando de um lado para o outro nas possíveis camadas de assuntos que tem de resolver.
O cigarro é deixado pela metade no cinzeiro rachado. Dessa forma, você vai se dando conta do número de coisas que deixa por fazer, quando repentinamente é assolado por uma forte dor de estômago que lhe embaça a visão e te faz cair de bruços no sofá. Ela passa, mas você continua ali.
Você resolve ler antigas cartas de amigos e amores na busca de permanecer vivo. Existir não é o bastante e você, mais do que ninguém, sabe disso.
Os últimos dias que amendrontaram você com dúvidas e tristezas, corroeram um pouco suas expectativas de seguir com projetos-embriões e está aí a chave para o sim ou para o não. Você começa a arquitetar planos de fuga em um raio de 3 centímetros mas as vozes que o convidam para ficar, o convencem de que não é hora de fazê-lo.
Então você pára. Sente que perdeu alguma linha de raciocínio com tanta desilusão e falta do que fazer, e sofre por isso. Mas você sabe que as tentativas de conversas com vizinhos irão tentar tirá-lo de seu vazio momentâneo, e tenta com unhadas e palavras de baixo calão agregar-se a uma realidade que não lhe é imposta simplesmente.
Você chora por não conseguir ser o que gostaria e descobre que, na verdade, é o que sempre foi ou o que quis ser. Nada mais que isso. A inércia nunca foi sua aliada e por isso você nada no aquário sem peixes e procura ver as horas em um relógio sem pilhas.
No tempo, você enxerga um inimigo silencioso e corrosivo. Arma a mesa e a toalha verde e tenta dar as cartas em meio à fumaça do charuto que queima empestiando o ambiente.
Você muda a disposição da sala, do quarto, joga fora velhos discos e assite a filmes do século passado. Mas não encontra o que precisa.
Dá-se corda no alto-falante e discursa para uma pequena quantidade de pessoas que a muito custo, tentam captar ume meia dúzia de palavras que você diz - quando ne verdade, queria gritar mais alto do que suas cordas vocais são capazes de suportar.
Você queria perder algo em troca de um benefício eterno e, no entano, encharca o lençol com lágrimas mal curadas e feridas descascadas antes do tempo.
Você desce os degraus de sua sanidade e percebe que por pouco, não há volta. O retorno ao cerne da questão está cada vez mais difícil e você não sabe mais para onde está indo.
Em meio ao chão borbulhento e movediço em que seus pés descalços pisam, você descobre um pedaço de papel e anota toda e qualquer coisa que lhe passa pela cabeça.
Está assim há mais de três dias e ainda nem notou que as luzes de seu bairro já se apagaram e que não há mais vozes lá fora que estão dispostas a lhe ouvir.

19 abril 2008

Diluir-se

.




ah... que saudades de mim mesma.

16 abril 2008

Con(to)fissões

O papel rabiscado às pressas e algumas gotas


secas


avermelhadas no tapete da sala me entregam. Vejo

vocês
lá.

02 abril 2008

Quando o Novo Cruza os Braços

.
Sempre achara vazio pensar como se fosse outro alguém. Um a mais, não a menos. Mas de soma duvidosa, sem forma nem cor. E das cores, precisava muitíssimo. Cada qual preenchendo suas lacunas adversas e confusas, de outrora.
Servira chá. Adicionara uma colher de açúcar, falta ele. Falta. Espaços. Muito ar pra respirar e pouco pulmão para fazê-lo. Já não mais sabia de metade das coisas que aprendera, como é fácil deixar-se perder para o inesperado, pensara. Aflita e só. Muitos deles; rodas vivas. Falta.
Hesitara uma, duas. Três vezes e já perdera o rumo. Da mão direita, deixara cair um pedaço de papel rabiscado: onde estivera, guia escasso.
Aguardam-na na sala de estar. Nunca estivera tão fora de casa como desta vez. Na ausência de palavras, encontra Clarice. Deixara por sua conta todo o resto...

"(...) A rede de tricô era áspera entre os dedos, não íntima como quando a tricotara. A rede perdera o sentido e estar num bonde era um fio partido; não sabia o que fazer com as compras no colo. E como uma estranha música, o mundo recomeçava ao redor. O mal estava feito. Por quê? Teria esquecido de que havia cegos? A piedade a sufocava, Ana respirava pesadamente. Mesmo as coisas que existiam antes do acontecimento estavam agora de sobreaviso, tinham um ar mais hostil, perecível... O mundo se tornara de novo um mal-estar. Vários anos ruíam, as gemas amarelas escorriam. Expulsa de seus próprios dias, parecia-lhe que as pessoas da rua eram periclitantes, que se mantinham por um mínimo equilíbrio à tona da escuridão — e por um momento a falta de sentido deixava-as tão livres que elas não sabiam para onde ir. Perceber uma ausência de lei foi tão súbito que Ana se agarrou ao banco da frente, como se pudesse cair do bonde, como se as coisas pudessem ser revertidas com a mesma calma com que não o eram.
(...)"
.
.
.
Algo mais escapara. Terá ela astúcia de perceber para onde deve seguir? "Tanto faz", respondera.
Então o
fizera.
"Lucy ya no duerme en casa...dónde está?"
Fito lo disse.

23 março 2008

A última dança



Entrelaçada em sua mão esquerda, a direita.
O vai, vem
apaziguado;


Na vitrola das valsas, a melhor:
Não se soube mais para onde foi
levado.


18 março 2008

Um Rio Sem Pressa

Eram sábias, as duas gurias. De uma forma ou de outra, elas possuíam o básico e até o intermediário. E seguiam. Davam saltos diferentes, pra lados meio opostos (oposição meia tigela) mas que não as impossibilitavam de voar na mesma direção. Momentos. Agora sabiam o valor de todos eles. Todos que passaram até ali. Havia muito mais a descobrir e, isso elas pareciam tirar de letra. Letras. Muitas delas. Um alfabeto construído pra transparecer o que havia de ser dito. Que abandonem os velhos costumes e a acentuação barata. Ali em frente, aos olhos delas, o anseio era sempre mais. Criavam ilusões. Na doçura do encantamento prolongado, elas deslizavam na corda bamba que nunca nos trás um ponto final. Era o início. Transcorrem diálogos na madrugada. Há distância. O zum zum zum praiano ouvido lá, em nada se compara à lúdica calmaria do Guaíba, daqui. E lá foram elas. Saíram pra passear, deram-se as mãos, vem comigo que eu tô contigo, não larguei, não. E foi bom. Compartilharam as vidas no presente. Um passado vivido em tempo cronológico não faz suas cabeças. Aliás, o tempo passa só pra levar as folhas amassadas embora. Reciclaram-nas. Mutantes em busca do movimento colorido, risos e choros e falhas e bons dias as esperavam. Corrida diária em busca. Busca vida. Prazer em conhecer. Ser para aquilo que se nasce. Envolvidas na delícia e no medo da prática dos projetos, seguiam. O trapézio fez o trajeto de volta. Não coube a mim agarrá-lo, mas a ela. Um salto. Voltei. Pé no chão. Visamos o alto de nossas realidades flutuantes. Como espumas. Soubemos as verdades que não foram ditas. Palavras, as letras aqui e novamente. Vozes que se encontraram em rápidos momentos oportunos. Um gole na garrafa errada e uns cigarros consumidos. Voltemos agora ao princípio do envolver-se: deixei de lado velhos papéis. Assumi um inspirado nariz de palhaço. Vermelho e lúcido. Chamei Neruda no cantinho e confessei que mais uma vez, eu vivi.

14 março 2008

Dr. Fantástico ou Como aprender a amar os gritos entusiasmados das crianças nos parques

*
Cantemos Erasmo no início: "Eu preciso de ajuda. Por favor me acuda. Eu vivo muito só. Eu me sinto muito só. Mas se acaso numa curva, eu me lmbro do meu rumo, eu piso mais fundo, corrijo num segundo. Não posso parar."
E pra mim é assim que inicia o fabuloso ("essa é a palavra") monólogo Parque de Diversões, que fui assitir ontem, no espaço Ox do Ocidente, aqui em Porto Alegre.
Pra falar bem do que foi visto - e, principalmente, ouvido (não precisamos ver, de verdade) - é necessário fazer algumas ressalvas. Prepare-se pra adentrar em um ambiente fatidicamente sinistro, onde camas, cinzeiros e livros são propositalmente jogados para a frente. As cinzas caem no chão, quase que sujando as delicadas meias pretas do rancoroso personagem.
Um asqueroso ruído de uma roda gigante aparentemente abandonada e muito antiga é proposto e enfiado tímpanos adentro. Nada que uma projeção de pontinhos-brancoscoloridos-absurdos num telão não menos absurdo não amenize.
O problema é quando as rodas iluminadas giram ao teu redor e tu não tens pra onde fugir. É preciso ouvir até o fim. O drama hilariante e trágico do cara que fala ao microfone é poesia mórbida, feita no melhor estilo improvisado de uma voz distorcida e amendrontadora de um ser que não dorme há 34 dias.
Ainda assim, o silêncio vale ouro.
Interagindo contigo o tempo todo, é traçado um objetivo desvirtuado de uma insana (e insone) vida nada pacata. O foco escuso e sombrio das palavras encenadas - ou não, perde-se a noção da meia realidade enquanto se está ali - te remete a uma ânsia vazia de desespero surdo. Espere pela morte que não vem. "Como é o fim? Não tem".
A inércia descabida espelhada em um outro-eu é um complicador alucinante. E não há meios de escapar dessa conclusão. O que se vê é a perda gradual do espelho da própria face, oculta em um discurso psicosimpático (definido por ele mesmo, certa vez) sem fim.
Vaza um dilema corrosivo. O louco entra em cena. Um delírio perfeito da mente deturbada de quem não lê mais o jornal que chega todo o dia é anunciado. E para que, mesmo? Pois "a sorte não vem nos jornais". Tá certo. Rá! Delicie-se com um final visualmente melancólico, onde as expressões modificam o que até então, parecia imutável. E saia com a sensação e a angústia barata de pensar em lojas-de-doces-abertas-aos-sábados.
Repito: fabuloso. E não o destino de. Pois esse já fora perdido desde a primeira baforada no cigarro mau fumado.

12 março 2008

No tom, na síntese. Sintonize-se

nos braços ventiladores que

somente cortam o ar dos que não

dançam conforme qualquer música.

08 março 2008

Enquanto isso se sucede

Aconteceu como havia de ser. Sem mais nem menos. Na verdade, ainda acontece. Não chegamos no passado e, olha, nem sei se ele nos alcança em tempo. O bom mesmo é o balde cheio de história misturada com as roupas pra lavar. Já saiu tanta coisa dali que ainda me flagro divagando o que de bom deve está por vir. Por certo é uma linha longa, nada de ordinariedades dessa vez, certo? Talvez seja a hora de partir pra lavação. Das palavras, claro. Abrir a torneira vocal e partir pro abraço. Assim mesmo, no melhor estilo narração de jogo de futebol. As roupas podem esperar.