03 maio 2008

Um conto mofado* ou Sobraram dedos

Originalmente publicado em Enfins no dia 25/10/2007.



A música tocava e ela não sabia dizer o que era. Talvez Jazz, quem sabe um daqueles cd's de relaxamento, não importava. Tudo o que queria era fazer uma pergunta a ele:
- Você acha que sabemos quando vamos morrer?
- O quê?
- É, quero dizer, você já sentiu em algum momento que iria morrer?
- Que pergunta! Claro que não. Se tivesse sentido, estaria morto e não aqui, com você, escutando essa ladainha.
- Pois eu acho que somos capazes de prever, nem que seja por uma fração de segundo, quando vamos morrer. E digo mais, em se tratando de tempo, eu acredito que minha morte pode acontecer a qualquer momento.
- (Ele ri) Você está louca! É melhor parar com esse pó antes que você cheire, se engasgue e morra na minha frente, fazendo com que eu acredite nas suas profecias descabidas!
(E procura ar pra se recompôr das palavras que acabara de ouvir dela.)
- Você está na mesma que eu.
- É, mas não estou sentado em um sofá laranja pregando a minha morte para quem quiser ouvir. Levante-se daí e me ajude a escolher outro som.
- Esse aí.
- Âhn?
- Esse aí que está no chão. O cd com capa colorida que eu te trouxe há séculos.
- Qual? Este aqui?
- É. Não, o do lado.
- Você acredita que as músicas possuem alguma espécie de mensagem oculta por trás daquilo que ouvimos? Jogue o isqueiro, por favor.
- Você diz, uma idéia subliminar?
- Quê?
- Uma mensagem que só pode ser captada se estivermos em um estado alterado de percepção?
- O quê? É, pode ser. Talvez seja isso que eu esteja pensando. Você não acha que... Esquece.
- A nossa morte pode aparecr na nossa frente neste mesmo estado de percepção que eu mencionei. A tal fração prévia de segundo, o momento final que...
- Tá bem, você tem razão. Agora me diga, o que você preferiria nesse momento: saber quando e como vai morrer ou descobrir o significado oculto por trás de uma música que esteja ouvindo?
- (Ela ri) Como se uma anulasse a importância da outra. Morte e Música, ambas começam com M e ambas nos fazem delirar sobre seus propósitos. Louco, não?
- Hmmm...
- Ah, esquece. Preciso de mais pó. Você tem?
- Aqui.
- Será que vão sentir a minha falta quando eu morrer?
- Eu vou. Mas acho que se começarmos a contar as pessoas, sobrarão dedos.
(Os dois desabam no tapete peludo no canto do quarto.)
- Tá ouvindo?
- O quê?
- Nada. Achei que tinha escutado o John dizer "Yes, he's dead" no final da música.
- Não é agora que começa o Revolver?
- Acho que é.
- Faz sentido.
- O quê?
- Garanto que para ele faltariam dedos.
- Quais dedos?
- Esquece.



*como os morangos, de Caio F


3 comentários:

Nana disse...

Adoro esse teu conto. Muito, de verdade... até já o li pro povo aqui de casa.

Médici disse...

talvez fosse, música de elevador.

Anônimo disse...

Lindo!

Tu tens muito talento para as palavras guria. Beijos

Saudades.