31 janeiro 2009

O dia em que matei minha família

Houve uma vez
em que o desespero era medido
na intensidade da chuva espessa.
Espaços de tempo obsoletos,
garfadas ao molho vermelho:
inspiração.
Respirou, enveredou, subitamente
empilhou pás e tesouras.
Na calçada onde as gotas prendiam-se nas árvores
insistentes em molhar nossos cabelos,
lá do topo
ouviu-se junto ao próximo relâmpago
gritos abafados e golpes certeiros.

Dois gatos imóveis.

30 janeiro 2009

Intérprete

Já sentados dentro da sala de cinema, ele começa a analisá-la discretamente, de soslaio, como um predador que não entrega suas intenções abruptamente à vítima mais próxima.
Aparentemente imersa nos trailers intermináveis que passavam na grande tela, ela fingia não notar estar sendo dissecada visulamente por alguém da poltrona ao lado.
Sentada a sua esquerda, rapidamente ela ergue as pernas para cima, dobrando-as rente ao corpo, sandálias no chão e segurando firme os pés para esquentá-los; está agora em posição que indica um alguém fechado a qualquer possível artimanha de Marcos. Desligam as luzes.

O filme começa e ela se dá conta de que não estava mais tão interessada em fingir-se de desinteressada ou numa apatia inerente àquele tipo de comportamento que por vezes tentava emergir. Afinal, juntos formavam uma ótima dupla, apreciadores mútuos de suas próprias companhias, hedonistas inquestionáveis e amantes do silêncio acolhedor após uma derradeira risada.

No transcorrer dos diálogos daquela sala gelada e afundados naquelas poltronas estofadas, persistiam travessões inquietos em sua consciência feminina. Tantas vezes flagrou-se avaliando a situação na qual se encontrava de modo a abandonar prévios receios, tendo decidido sair da sessão com as pernas um pouco menos apertadas ao corpo - esse já acalorado - e na ânsia de tê-lo um pouco mais perto do que já o permitia, talvez conseguindo até ouvir a sua respiração intensa enquanto alguma mensagem de afeto entrava pelo ouvido direito, fazendo-a cerrar os olhos e palpitar mais forte o coração, sentindo-se um pouco tola, desajeitada, mas esboçando um frágil sorriso de escanteio enquanto sentia suas bochechas corarem tanto que poderiam deixar as luzes apagadas por mais uns instantes.

03 janeiro 2009

Pela noite

"Tanto faz. Um cara aí, que importa? Que importam os cartões ou todas as cartas de amor do mundo? Se eu ia mesmo em julho. Bem, você vê, julho está nas portas e eu não fui. Você está me vendo aqui onde estou? Tanto quanto estou me vendo ali no espelho? Pois é, eu não estou em Paris."

Caio Fernando Abreu

Que venham os (l)touros

Subi as escadas, três andares, uma porta aberta e a sala de estar arrumada, como eu nunca havia deixado antes. Tudo vazio, cheiro de pó, carpete cor-de-nada e uma confortável sensação de estar em casa. A cama: lençol e edredon. Uma dádiva. Sono profundo, sem sonhos. Não lembraria de qualquer forma. Talvez fosse melhor lembrar dos sonhos do que das recordações malditas que pairam na minha consciência, essa um pouco deturbada devido à passagem de tempo e à impotência gananciosa de saber que não estará em minhas mãos agir.
Um ano morre, outro nasce. Colados, um segundo de diferença apenas me separam da maior abdução terrestre. Não queria estar em mim. Uma vida sem meu eu por uns meses. Poderia voltar depois. Morte parcial, tecidos reconstituídos. Grande baboseira. No final eu sei que vou sofrer as consequências como um cão. Mais uma dose de drama, por favor!

Porcelain

Teceria alguns comentários a respeito do que fica após a perda. Não somos únicos, nós, que julgamos não saber lidar com aquilo que restou. De fato, não nos imaginamos vivendo em boeiros fétidos trocando miúdos com um par de ratos logo ao lado. De restos vivem eles, os outros.
Assim jurou crer por anos. Mas os mesmos logo passaram e nem sempre os acompanhamos.

A esperança do bem-estar após um longo período de choro constituía, agora, o seu último sopro de manter-se em pé, um pouco torto, caminhando meio de lado, já diria Leminski, um homem que sofre sempre tem um quê de sofisticação. Não importam as intenções, os contudos e as vias expressas; um imaginário aberto à mutilação do mundo era o seu pior inimigo. E bem sabia que travaria uma luta a seguir.

Uma ou duas vezes pensara sobre o amor. E sobre a falta dele, debruçara-se nos lençóis vazios: duas pernas e apenas um coração. Anatomia falha. Sentia que a falta o completava, pois a perda o fizera menor, minúsculo, ridículo.

Precisava respirar. Há tempos não lembrava de soprar o próprio ar com veemência. Desde que partiu, tudo fora obsoleto, matéria escassa, coisa-alguma.

Na parede, fotografias e um calendário. Sempre soube que