17 junho 2012

Uma análise das imagens mitopoéticas em obras de Jorge Luis Borges

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    Em seu livro, Diálogos, o então jornalista, Orlando Barone, conseguiu reunir no ano de 1974, no antigo apartamento da pintora uruguaia Renné Netinger, na Rua Maipú, em Buenos Aires, os escritores Jorge Luis Borges e Ernesto Sabato, velhos amigos (desentendidos por uma rixa política), para viabilizar a organização de sua obra. Os assuntos discutidos foram desde o tango e a admiração de Borges pelos Beatles, à paixão em comum por autores como Cervantes, Flaubert e Kafka. 
    Os “diálogos” ali reunidos não nos fazem lembrar somente do século passado, um tempo cada vez mais distante, mas também de uma época em que a literatura assumia compromissos de vocação, e essas mesmas palavras possuíam outros sentidos.
    Em uma das conversas, registradas por Barone em seu vetusto gravador General Eletric, e transcritas em sua antiga máquina de escrever Corona – que estampou os originais dos textos – Borges fala do comprometimento com a emoção superando a intelectualização quando da construção de um poema, assim expressando-se: 

Há uma ideia de Poe de que um poema é uma construção intelectual, e é totalmente falsa. É possível, mas não corresponde à literatura. Se em um poema não há emoção prévia, tampouco há necessidade de escrevê-lo. Finalmente, todo grande poeta instintivo nos deixou, quase sempre, os piores versos que alguém possa imaginar, mas também, alguma vez, os melhores (BORGES, In: DIÁLOGOS, 2005, p. 78).

    Em seus textos, Borges faz o leitor adentrar um universo labiríntico, onde cada linha faz costura com outros textos e com textos seus próprios, nos quais se perde a sensação de tentar definir a leitura; cada elemento é uma tela com linhas infinitas, que por sua vez, criam um tecido infinito de conclusões, as quais só são possíveis de se chegar através de nossos instintos, como afirmado pelo próprio escritor. Neste momento, é possível atribuir a semelhança contida tanto em seus poemas, como em suas narrativas mais longas, os contos, através do afirmado nas conversas com Sabato. A “emoção prévia” de que trata, pode se conjurar na tentativa de (des)racionalizar o mundo que lhe serve de inspiração. A criação de símbolos em seus textos configura o seu modo de “ver” (aspas justificadas pelo fato de que, quando escreveu muitas de suas obras, Borges já estava tomado pela cegueira, que iniciou em meados de 1955) a realidade no momento de suas criações.
    A utilização de recurso mitopoético em suas imagens-símbolos permeia praticamente toda a sua literatura. É comum nos depararmos com rios, espelhos, bibliotecas, tigres, labirintos, espadas, entre outros no decorrer de uma escrita borgeana. A ideia de infinito também é recorrente, sendo o conto A Biblioteca de Babel (presente no livro “Ficções”, primeira edição de 1941) um representante voraz desta característica. É lá, na Biblioteca, que Borges pensou o Universo em sua infinitude, cercado por galerias que mantêm milhares de prateleiras que contêm os mais diversos títulos. Na realidade do conto, não há assunto ou problema que não possa ser encontrado em alguma obra. Entende-se que o mundo é ilustrado na forma de vida das pessoas que estão dentro da Biblioteca, se é que existe, para o enredo, um “fora dela”. Lá a raça humana – a única – compartilha de imperfeições, agonias, tristezas e também felicidades, mas busca-se o entendimento e as respostas para enigmas existenciais (criação do mundo – neste caso, da Biblioteca –, do tempo, do homem...) através dos livros. Cada prateleira contém trinta e dois livros de formato uniforme; cada livro tem quatrocentas e dez páginas; cada página, quarenta linhas; cada linha, umas oitenta letras de cor negra (BORGES, 2007, p. 70). Os protagonistas da história, os livros, são ao mesmo tempo causadores de discórdia e redenção, e não há na Biblioteca sequer um livro igual ao outro: são únicos e insubstituíveis, porém é comum encontrar volumes que somente não se assemelham por completo devido a uma letra ou vírgula. 
    É com esse caráter minucioso de quem está prestes a criar um mundo novo, porém já conhecido (uma biblioteca, por exemplo), que desvendamos o estilo de escrita de Borges, preocupado com a entrega de uma história que passa pelas mais diversas emoções do ser humano, que o faz querer acreditar no que também não pode ver. Como ele mesmo afirma, em seu conto Zahir, tudo no mundo está dividido em duas partes, das quais uma é visível e a outra invisível. Aquela visível não é mais que o reflexo do invisível (BORGES, 2008). 
    O escritor e professor Charles Kiefer, em sua tese de doutorado, menciona que Borges nos ensinou que a literatura não é meramente uma imitação da realidade e sim, uma outra realidade, irmã do sonho, do devaneio, do delírio, e que os personagens, assim como os enredos do escritor argentino, são labirínticos e espelhados: “(...) eu prefiro sonhar que as superfícies polidas figuram e prometem o infinito...” (BORGES, 2007, p. 69).
    Em uma das obras que servirá de base para análise posterior a este Projeto de Monografia, o autor argentino parece querer construir uma espécie de metáfora do caráter instável da literatura como um todo, ao batizar um de seus contos de “O Livro de Areia”, pois não se sabe de onde vem este livro. Em uma abordagem diferente, este escrito borgeano parece uma metalinguagem de sua própria obra. Neste conto, logo no início nos deparamos com a afirmação:

A linha consta de um número infinito de pontos, o plano, de um número infinito de linhas; o volume, de um número infinito de planos, o hipervolume, de um número infinito de volumes... Não, decididamente não é este, more geometrico, o melhor modo de iniciar meu relato. Afirmar que é verídico é, agora, uma convenção de todo relato fantástico; o meu, no entanto, é verídico (BORGES, 1984, p. 115).

    Essa imagem realça a ideia de labirintos infinitos onde nos perdemos através de uma leitura em que os caminhos nunca são planos, ou retos. Sempre nos conduzem para a junção onde realidade e ficção misturam-se; uma poderosa literatura que nos insere em imagens fortes, em símbolos que nos fazem perguntar se estamos diante de personagens fictícias ou de memórias reais. Suas citações e referências constroem um passeio pela história da humanidade, enquanto as areias infinitas do tempo escorrem através de nossa percepção finita. Borges, no entanto, parece ter acumulado conhecimento suficiente para beirar o absurdo em sua erudição. Por meio de seus símbolos imaginativos e universais, podemos enxergar um caráter coletivo, dos pontos de vista sociológico, antropológico e psicológico. Contudo, cada um deles se individualiza e forma uma dimensão simbólica, na qual, muitas vezes, cabe somente a própria realidade do autor. 
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Referências
BORGES, Jorge Luis. Ficções. São Paulo: Companhia das Letras, 2007.
BORGES, Jorge Luis. O Aleph. São Paulo: Companhia das Letras, 2008.
BORGES, Jorge Luis & SABATO, Ernesto. Diálogos. Organização: Orlando Barone. São Paulo: Globo, 2005.
KIEFER, Charles. A poética do conto. Porto Alegre: Nova Prova, 2004.



(Texto-parte da Fundamentação teórica do meu Projeto de Monografia)

21 fevereiro 2012


AFTERGLOW
Sempre é comovedor o ocaso 
por indigente ou charro que seja 
porém mais comovedor ainda 
é aquele brilho desesperado e final  
que enferruja a planície  
quando o sol último afundou. 
Nos dói suster essa luz intensa e distinta,  
essa alucinação que impõe ao espaço  
o unânime medo da sombra  
e que cessa de repente  
quando notamos sua falsidade,  
como cessam os sonhos  
quando sabemos que sonhamos.


Extraído do livro de poemas Fervor de Buenos Aires, de Jorge Luis Borges; 1923.