11 maio 2011

Pirexia

"Vai cessar o som / A sessão já foi / Despertar é bom / Mas dói"

(Chico Buarque e Edu Lobo)


Naqueles dias, o tempo estava feio, e ficávamos quase sempre dentro de casa. Lembro-me que nem eu, nem Carmem esboçávamos o intuito de descer até o pátio para pegar lenha. Vivíamos do sofá antigo da sala à nossa cama.
"Parece que amanhã o tempo continua assim", ela dizia com frequência e, confesso, eu não procurava alternativa que não a de estar junto dela naquele inverno.
Passamos assim por volta de três ou quatro semanas. Estávamos em um período coincidentemente feliz, no qual ambos podiam relaxar de suas obrigações para com o mundo lá fora. Acredito que por não termos nos aliado às horas, essa temporada juntos teve significativo sossego e pôde durar pelo tempo que precisasse.
Com o decorrer das semanas, nossas atividades dentro de casa foram reduzindo de tamanho e proporcionalmente aumentando de intensidade. Um simples preparo de café da manhã constituía-se em pelo menos duas horas de empenho e dedicação.

Em uma dessas manhãs, ainda na cama e pronta para levantar-se e ir até a cozinha torrar os pães, Carmem encostou de relance em minha pele e constatou meu estado febril. "Estás suando frio... Como te sentes? Vou lhe preparar um chá, fique aqui". Neste dia Carmem movimentou-se pela casa em busca de remédios, e procurou manter-me acalorado, enquanto eu sentia meu corpo tomado por alguma infecção, que veio assim, de imediato, e parecia não deixar-me em paz tão cedo.
Eu alucinava em nossa cama. Tinha sonhos turbulentos e sentia muita dor em cada osso do meu corpo. Todas as noites, Carmem cobria levemente minha testa com panos umedecidos em água fria, que pareciam dissolver-se no ar ao tocar minha tez abatida pelo calor da febre. A aparência debilitada que eu representava durante este tempo era preocupante.
"Acho que precisamos chamar um médico, Augusto". Ela sabiamente indicava.
Eu sentia que estava morrendo. Carmem sugeriu de deixarmos a casa e encontrar seu irmão mais velho, um bom doutor infectologista que certamente diagnosticaria corretamente a minha repentina doença. O irmão de Carmem vivia em Toledo, a cerca de trinta minutos de Madrid, mais uns vinte de onde morávamos. "Se formos de trem amanhã à tarde, chegaremos lá ao anoitecer. Vou guardar algumas roupas na mala". Concordei em deixar nossa morada para trás por alguns dias, se fosse preciso. Lembro de sentir uma preocupação constante de definhar pelo meio do caminho. Mas concordei.
A neve parecia estar dando uma trégua lá fora, pelo menos até chegarmos em Toledo, então não haveria porque prolongar-me enfermo dentro de casa e aborrecer Carmem por mais uma semana e correr o risco de contaminá-la, caso eu tivesse algo mais sério, algo que não suportaríamos sem assistência, algo que.

*****


A última noite dentro de casa foi de preparativos para a viagem. Carmem esforçava-se em deixar tudo arrumado, enquanto eu mantinha-me aquecido e pouco falava, para manter alguma energia e não comprometer o nosso trajeto. Na manhã seguinte, notei que ela se levantou mais cedo e sussurrou algo como "estou indo comprar antitérmicos, aspirinas e garrafas de água mineral". Sonolento, fiz que sim com a cabeça e tratei de permanecer deitado. Passados alguns instantes, precisei ir ao banheiro. Levantei vagarosamente da cama, mas sentia-me ainda muito fraco. Estava calmamente colocando os pés no tapete e tomando impulso para levantar o corpo inteiro, quando não dei por conta que, de súbito, fui invadido por uma onda de calor, um ar sufocante que inflava meu peito e subia para a garganta rapidamente, de forma que em poucos segundos, meu rosto e cabelos estavam ardendo, e era forte, cada vez mais forte. Mas não havia fogo, só o calor dele; não sabia o que estava acontecendo. Sentia-me impotente, frágil e sozinho: Carmem ainda demoraria alguns minutos para voltar. Comecei a gritar seu nome, mas fora inútil. Com a nevasca dos dias anteriores, as ruas foram interditadas e o caminho a pé era perigoso, sendo que muitas pessoas machucavam-se em quedas nas calçadas - era preciso parcimônia e um motivo muito importante para sair de casa.
Em meio ao delírio daquela sensação pitoresca de sentir-me em chamas, expressei, de relance, um momento de lucidez e força, ao esgueirar-me até o banheiro, resmungando palavras de dor e desespero. Engatinhando, coloquei-me debaixo do chuveiro, esticando meu braço esquerdo o máximo que pude para girar a torneira. A água fria começara a cair sobre mim e em seguida senti como se algo rompesse em meus ouvidos e produzisse um estouro somente dentro de meus tímpanos. Creio ter ficado surdo por alguns instantes, não sei precisar o tempo exato, mas de certo não estava em perfeita audição. Um zunido - que se tivesse que lhe atribuir uma cor, seria metálico - começou a atormentar-me; creio ter sofrido um choque térmico ao sair de debaixo das cobertas e das roupas de lã para o chuveiro de água quase congelante.
Fiquei prostrado, abafando as orelhas com as mãos, urrando de vez em quando de dor e esperando que passasse. Mais além, a sensação de labaredas possuindo minha mente dissipou-se e o ruído em meus ouvidos já não havia de ser nada, desde que Carmem retornasse e não me visse naquele estado e trouxesse meus remédios para que, enfim, pudéssemos embarcar no trem rumo a Toledo, rumo à consulta com seu irmão. Rumo à serenidade de saber que eu estaria convalescendo em poucas horas.
Recordo de estar deitado de lado no chão do nosso banheiro, molhado, tremendo e tomado por uma libertadora sensação de gelo caindo em meus cabelos. Meu êxtase foi tamanho que penso ter ficado ali por horas, inebriado por um conforto duvidoso e uma realidade solitária à minha volta.
Passado certo tempo, escuto passos na escada e um cantarolar feminino que vinha de longe, agora se aproximava de mim. Carmem havia retornado. Senti uma mistura de alívio e preocupação por estar na iminência de ela abrir a porta do quarto, ver-me jogado ao chão do banheiro e apavorar-se, sair aos berros clamando por ajuda ou algo que o valha. "Augusto! Cariño! O que está acontecendo?!" Ouvi alguns "socorro, acudam" em tom de desespero, como se estivéssemos próximos de alguma vizinhança acolhedora, ou de uma vizinhança qualquer, mas morávamos em um local muito afastado do centro de Madrid, onde recolhíamo-nos, sem remorsos, em uma existência pacata e segura.
"Meu peito... os cabelos... era fogo, Carmem. Eu estava queimando". Foi o máximo que pude contar-lhe naquele momento, e na verdade não me lembro de ela compreender o que havia acontecido comigo. Talvez minhas palavras foram ditas em vão, pois recordo de seu olhar, achando que eu quase virara um moribundo, como se não houvesse mais volta para aquela situação. Eu não estava em condições de acalmá-la, de confortá-la, e era tudo o que eu mais queria. A seguraria em meus braços e não desviaria meu olhar dos seus grandes e negros olhos, e em segurança, diria-lhe que sobrevivi e que poderíamos viajar e encontrar seu irmão doutor e curar minha doença misteriosa, para que regressássemos o mais prontamente ao nosso lar de comunhão absoluta, e fugir do frio que estala nossos ossos lá fora. Mas não pude, minha fala me traiu e o processo lento dos meus pensamentos não ordenava uma lógica em minhas palavras. Somente recordo da face assustada de minha devota Carmem e de alguns pingos gelados que despencavam de sua roupa, enquanto me segurava entre as pernas; as gotas em direção ao meu rosto, este já resfriado pela água anterior do chuveiro, e desta forma, não sei por que, mas comecei a pensar que talvez a neve lá fora não fosse tão ruim assim.

Um comentário:

Nina de Oliveira disse...

Nossa! Impacto profundo!
Beijos