29 maio 2008

Você ser humano

Apressou-se a engrenagem. Você não sabe mais controlar a situação. Horas e horas e momentos que não vêm correm solto à sua frente. Entregou-se. Não saberá o local do acerto. Feixes de luz atravessam sua morada e, mesmo assim, você ainda não enxergou as setas indicando quê. No peito, transborda. Atravessa a carne, sangra até morrer e voltar. Talvez você só quisesse ficar. Permanecer. Não há quarto para o incerto, reserve-se no direito de seguir a própria cavalgada. Mas você sofre. Não entende. Tudo é vago e não consola a mente e o calor que tão logo vai se esvaindo pelo suor da pele gelada. No peito, treme. Você precipita uma bomba lançada no ar, no escamoso ar. São quase todos os dias e você torna a sentir a dor de ser dilacerado. Novamente é um suposto guerreiro em seu campo de batalha, onde o veneno das flechas que atravessam o sujeito não parecem desviar. Você não gosta de atalhos. No peito, aberto, sente. O problema é ser humano demais, você disse.

24 maio 2008

Mais uma vez, você

São quase três. Mais uma vez, você. Tocam firme os dedos pelo piano e você nem pode mais fumar seus cigarros tranquilamente. Enquanto desliza suave o encanto da valsa, pensa. E.
Você se divide em muitas partes, perde tanto quanto gostaria de ganhar e ainda não conseguiu encontrar o caminho mais fácil de chegar em casa. Uma vez fora de si, você dificilmente voltará tão cedo; pede que, por favor, não o esperem pois. Repete a música antiga e cultiva novos hábitos, daqueles que nem você seria capaz de prever que sim. Ela não apareceu. Você nem pode mais fumar. Olhou pro chão e encontrou a própria sombra parada em outro lugar. De ninguém mais. De agora em diante, você só espera por menos. Menos dor, menos querer. Menos alcançar o vácuo deliberadamente. Menos sufocar o peito apertado, o coração de tanto bater uma hora pode parar. De agora em diante, você. Mais uma vez.

19 maio 2008

Enquanto isso, você

Você mal consegue assimilar o que está havendo. Seca as mãos na toalha não trocada há doze dias e se olha no espelho. De súbito - e de certa forma permanente - , o rosto dela surge em seu pensamento e você começa a perder a força nas próprias pernas. Sua respiração torna-se ofegante e você percebe que perdeu a chance de não estar assim; deixou-se envolver nesse excitante desconhecido e agora não consegue mais conceber a idéia de passar um dia sem vê-la. Nesse jogo de aperto na garganta e espera pelo que não sabe que vem, você ouve a voz dela pela primeira vez, enquanto delira em lúcido despertar com a sensação maravilhosa de afundar os dedos de sua mãos nos cabelos incrivelmente encaracolados que ela tem. Você quase pode aspirar de relance o cheiro de cerejas frescas que eles provocam em suas narinas e no entanto, você jamais trocou uma palavra com ela, muito menos imagina com qual nome fora batizada.
Você acaba por deixar que o pensamento no rosto delicado e provocante que ela tem torne-se idéia fixa e nada desagradável. Poderia mirá-la pelo tempo que não saberia contar e sabe que precisará encará-la como nunca o fizera com ninguém.
Você mal pode esperar para passar horas relembrando das primeiras coisas que vocês dirão uma à outra. Pensando nessa possibilidade, você gira a maçaneta enferrujada e decide apanhar o jornal no tapete da porta.

12 maio 2008

Você

Você tem em mãos um velho álbum de fotografias, daqueles que ninguém mais se entusiasma em olhar. Pouco a pouco você distribui diferentes nós de emoção; a cada imagem de rosto ou lugar ou situação que norteia o seu olhar moribundo, você dá-se conta de uma porção de coisas que já não tem.
Cedo ou tarde, você será surpreendido por algum tipo de visita. Tarde, você recolherá os papéis amassados, arremessados. Cedo, você acordará para uma mesma realidade. Tateando em busca de seus óculos de grau, você enxergará com três outros sentidos; lambendo o próprio braço ossudo, você descobrirá que também é feito de gostos. Você não mais aceitará que o surpreendam sem sapatos. Amanhecerá e você ainda não pregou os olhos, não sentou no sofá novo, não deu de comer aos peixes, não cortou as unhas das mãos e nem pensou em terminar de ler aquele livro. Você nunca entende o porquê.
Acostumado, você passeia pelas mesmas galerias geladas e sem graça. Os cafés já não lhe dão o prazer de outrora e, há muito, você não sabe como é mexer nos cabelos de alguém. Essa desesperança não o faz sentir-se bem, mas pouco você se intromete para cambiar tal quadro, visto que tudo pode ser o que não é.
Não é cedo e no entanto, você ocupa-se mirando velhas fotos. Seus lábios colorem-se de vinho e você já não aguenta mais o peso da própria idade ali representado.

09 maio 2008

Deja Vu

"E, no entanto, embora cada um tente
fugir de si mesmo como de uma prisão
que o enclausura em seu ódio,
faz parte do mundo um grande milagre:
eu o sinto: toda vida é vivida."


Rainer Maria Rilke, Le livre du pèlerinage

03 maio 2008

Um conto mofado* ou Sobraram dedos

Originalmente publicado em Enfins no dia 25/10/2007.



A música tocava e ela não sabia dizer o que era. Talvez Jazz, quem sabe um daqueles cd's de relaxamento, não importava. Tudo o que queria era fazer uma pergunta a ele:
- Você acha que sabemos quando vamos morrer?
- O quê?
- É, quero dizer, você já sentiu em algum momento que iria morrer?
- Que pergunta! Claro que não. Se tivesse sentido, estaria morto e não aqui, com você, escutando essa ladainha.
- Pois eu acho que somos capazes de prever, nem que seja por uma fração de segundo, quando vamos morrer. E digo mais, em se tratando de tempo, eu acredito que minha morte pode acontecer a qualquer momento.
- (Ele ri) Você está louca! É melhor parar com esse pó antes que você cheire, se engasgue e morra na minha frente, fazendo com que eu acredite nas suas profecias descabidas!
(E procura ar pra se recompôr das palavras que acabara de ouvir dela.)
- Você está na mesma que eu.
- É, mas não estou sentado em um sofá laranja pregando a minha morte para quem quiser ouvir. Levante-se daí e me ajude a escolher outro som.
- Esse aí.
- Âhn?
- Esse aí que está no chão. O cd com capa colorida que eu te trouxe há séculos.
- Qual? Este aqui?
- É. Não, o do lado.
- Você acredita que as músicas possuem alguma espécie de mensagem oculta por trás daquilo que ouvimos? Jogue o isqueiro, por favor.
- Você diz, uma idéia subliminar?
- Quê?
- Uma mensagem que só pode ser captada se estivermos em um estado alterado de percepção?
- O quê? É, pode ser. Talvez seja isso que eu esteja pensando. Você não acha que... Esquece.
- A nossa morte pode aparecr na nossa frente neste mesmo estado de percepção que eu mencionei. A tal fração prévia de segundo, o momento final que...
- Tá bem, você tem razão. Agora me diga, o que você preferiria nesse momento: saber quando e como vai morrer ou descobrir o significado oculto por trás de uma música que esteja ouvindo?
- (Ela ri) Como se uma anulasse a importância da outra. Morte e Música, ambas começam com M e ambas nos fazem delirar sobre seus propósitos. Louco, não?
- Hmmm...
- Ah, esquece. Preciso de mais pó. Você tem?
- Aqui.
- Será que vão sentir a minha falta quando eu morrer?
- Eu vou. Mas acho que se começarmos a contar as pessoas, sobrarão dedos.
(Os dois desabam no tapete peludo no canto do quarto.)
- Tá ouvindo?
- O quê?
- Nada. Achei que tinha escutado o John dizer "Yes, he's dead" no final da música.
- Não é agora que começa o Revolver?
- Acho que é.
- Faz sentido.
- O quê?
- Garanto que para ele faltariam dedos.
- Quais dedos?
- Esquece.



*como os morangos, de Caio F


02 maio 2008

MIJAM NA GENTE E OS
JORNAIS DIZEM: CHOVE!



by não sei quem.